O TCU (Tribunal de Contas da União) mandou a Codevasf suspender uma série de obras de pavimentação após a estatal ligada ao governo Jair Bolsonaro (PL) reconhecer que parlamentares escolhem até os tipos de asfalto a serem utilizados nos serviços.
Julgamento realizado nesta quarta-feira (25) pela corte apontou a ação política e a falta de critérios técnicos nas licitações, após uma série de reportagens da Folha revelar como atua a estatal, entregue por Bolsonaro a aliados do centrão.
A área técnica do TCU verificou que, “sem qualquer fundamentação expressa”, políticos indicam quais vias devem ser revestidas e qual “empresa e/ou contrato/pregão específico que deve ser utilizado para executar a obra”.
A decisão tomada nesta quarta-feira pelo tribunal impede a emissão de novas ordens de serviços em contratos feitos a partir de 29 pregões eletrônicos lançados em 2020. Estas licitações permitiriam a execução de “contratos guarda-chuvas” que podem somar até R$ 622,15 milhões.
A suspensão nessas obras, em dez estados (AP, BA, AL, RN, PE, SE, MG, TO, PI e MA) e no DF, vale até a companhia provar que implementou estudos sobre a vantagem técnica e econômica do tipo de revestimento escolhido, além de análises sobre a necessidade das pavimentações.
Procurada depois do julgamento do TCU, a Codevasf não se manifestou até a publicação da reportagem.
Em ocasiões anteriores, negou irregularidades, disse atuar em permanente cooperação com órgãos de fiscalização e controle e que tem observado as determinações do TCU.
Turbinada por bilhões de reais em emendas parlamentares no governo Jair Bolsonaro, a Codevasf mudou sua vocação histórica de promover projetos de irrigação no semiárido para se transformar em uma estatal entregadora de obras de pavimentação e máquinas até em regiões metropolitanas.
Tal expansão de atividades ocorre sem planejamento e com controle precário de gastos, segundo órgãos de fiscalização e documentos da própria estatal. A Folha revelou que a Codevasf usa brechas em licitações simplificadas para multiplicar obras de pavimentação e escoar verbas de emendas parlamentares.
A manobra é pilar da argumentação da área técnica do TCU, mas os ministros do tribunal não chegaram a proibir esse modelo, centrando as críticas ao modo como é implementado. O mecanismo empregado para licitar os asfaltamentos contou com aval do próprio TCU, que considerou nesta quarta que a estatal cumpriu “parcialmente” com uma série de ajustes que deveriam ser feitos para impedir irregularidades e sobrepreço nas obras.
O TCU avaliou que a Codevasf tem violado mandamentos básicos da impessoalidade e da isonomia, abrindo margem para “direcionamentos indevidos de realização de obras e ocorrência de conluio entre empresas e agentes públicos e políticos”.
De forma geral, esse tipo de licitação simplificada permite fechar “contratos guarda-chuva”, com “objeto incerto e indefinido, sem a prévia realização dos projetos básico e executivo das intervenções”, afirmou o tribunal ao permitir a manobra em 2021.
Como mostrou a Folha, a Codevasf tem considerado serviços de pavimentação complexos como trabalhos de engenharia simples, que poderiam ser cotados por metro quadrado tendo por base modelos fictícios de vias, extrapolando a decisão do tribunal.
Na prática, a estatal federal tem fechado diversos contratos para obras precárias, deixando em segundo plano o planejamento e a fiscalização das obras. Em relatório de auditoria, técnicos do TCU afirmam que 35% de 78 ofícios de parlamentares com indicações de obras também faziam “alguma referência ao tipo de pavimento a ser executado ou à ata em vigor”.
Em uma resposta ao TCU, a própria Codevasf reconhece que não tem o pleno controle ao menos do tipo de revestimento escolhido nas obras. “Sem querer afastar-se da responsabilidade em participação no processo, informa-se nesta oportunidade que a escolha não cabe exclusivamente à equipe técnica. O tipo de pavimento escolhido é resultado de demanda externa (parlamentar, município)”, afirmou a 5ª Superintendência Regional da companhia, localizada no estado de Alagoas.
“A partir desta demanda galgada na necessidade publica alegada pelo representante da população beneficiaria é que a administração da Codevasf, equipe técnica e superintendência, avalia a oportunidade e conveniência administrativa somada à possibilidade técnica, estando justificada no processo licitatório”, disse ainda a mesma divisão da estatal.
Os ministros do tribunal também decidiram que o presidente da estatal, o engenheiro Marcelo Moreira Pinto, deve ser ouvido sobre as possíveis irregularidades. A estatal deve em 30 dias criar mecanismos que reforcem a escolha técnica sobre o tipo de revestimento usado nas obras, além de estudos sobre a necessidade dos serviços, decidiu o tribunal.
No fim de abril, o TCU apontou que a companhia burlou uma licitação para realizar obras de pavimentação de R$ 25 milhões no Distrito Federal. Apesar de a estatal ter encaixado esses serviços na modalidade destinada a tarefas simples, a pavimentação na capital federal é complexa e tem ligação com um anel viário regional. O tribunal, então, apontou indícios de ilegalidade e interrompeu cautelarmente os contratos.
Esse tipo de licitação chegou a ser avalizada pelo TCU sob o argumento de que pode facilitar a realização de convênios da estatal com estados e municípios, para multiplicar obras de asfaltamento. A empresa contratada pode ainda replicar as tarefas, cobrando o mesmo valor por metro quadrado, por exemplo, independentemente do local escolhido para o serviço.
Quando analisou e autorizou o uso do mecanismo, em 2021, o TCU mostrou não ignorar as fragilidades da manobra e o risco de superestimativa nos serviços. Assim, determinou a adoção de “pontos de controle” pela Codevasf, para contratações futuras. O principal deles, segundo o tribunal, seria o de adotar medidas para encaixar a situação das vias reais às condições estabelecidas nos contratos guarda-chuva.
A Codevasf não cumpriu com todas as determinações exigidas para manter a licitação simplificada, disse o TCU na tarde de quarta. Entregue ao centrão pelo presidente Jair Bolsonaro em troca de apoio político, a Codesvaf se transformou em um dos principais instrumentos para escoar a verba recorde das emendas.
Pela lógica da Codevasf e do tribunal, o mais importante desse tipo de licitação simplificada é servir de via rápida para que os congressistas possam destinar o dinheiro público, o que na prática ocorre em especial por meio das emendas de relator. Este tipo de verba é usada para irrigar redutos eleitorais e está no centro de suspeitas de corrupção do governo.
A Folha publicou uma série de reportagens que mostrou o aumento de 240% no uso do modelo afrouxado de concorrência em 2021, o descontrole administrativo que abrange R$ 4 bilhões e a participação de apenas uma empresa ou o uso de firma de fachada em muitos pregões.
A CGU (Controladoria-Geral da União) também já fez um exame sobre as obras no DF e verificou que elas são incompatíveis com o modelo de licitação utilizado pela Codevasf.
Em relatório sobre contratos de pavimentação da estatal, a controladoria aponta que o caminho simplificado só pode ser adotado para serviços “padronizáveis, de baixa complexidade” e de “contratação frequente”
A equipe técnica do TCU disse que a Codevasf tem atendido aos pedidos dos parlamentares por obras sem avaliar a necessidade do serviço. “Estes pedidos vêm sendo atendidos pela Codevasf, a qual também não forneceu a esta equipe documentos com algum tipo de análise ou aprovação técnica dessas indicações relacionados à necessidade das obras e o tipo de revestimento escolhido”, apontaram os auditores.
O tribunal afirmou que a estatal não fez estudos que apontassem quais locais dentro de uma região deveriam ser priorizados nos serviços. “Apesar dos notórios e conhecidos problemas de pavimentação em municípios, principalmente fora dos eixos das capitais, e da restrição orçamentária acometida atualmente pelo país, foram verificadas vias aparentemente em bom estado de conservação que serão ou estão sendo objeto das obras”, afirmou a área técnica da corte.
Como mostrou a Folha, a empreiteira que lidera as contratações da estatal no governo Bolsonaro participa das disputas públicas ao lado de uma empresa de fachada. Já a vice-líder tem sócio oculto que é réu por supostos desvios e atos de corrupção.
De 2018 a 2021, o valor empenhado (reservado no orçamento para pagamentos) pela Codevasf avançou de R$ 1,3 bilhão para R$ 3,4 bilhões, a reboque das emendas parlamentares, que saltaram de R$ 302 milhões para R$ 2,1 bilhões no mesmo período.
Apesar desse novo patamar de recursos, as obras da companhia têm uma realidade de execuções precárias, como mostrou a Folha ao visitar cidades de Maranhão, Pernambuco e Alagoas.
Com a explosão da verba indicada pelo Congresso, a Codevasf também retém mais recursos de “taxa administrativa”. A empresa fica com 4,5% do valor das emendas parlamentares.
Fonte: Folha de São Paulo
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