Recebedora de ao menos R$ 3 bilhões dos cofres públicos por meio de emendas parlamentares durante o governo Jair Bolsonaro (PL), a estatal Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) chegou ao fim de 2021 sem comprovar no balanço o valor real das obras que executa.
O problema foi identificado em relatório da auditoria independente Russell Bedford. Obtido pela Folha de S.Paulo, o documento faz uma ressalva nas contas dizendo que a Codevasf encerrou o exercício “verificando a existência das operações” da carteira de obras para apresentar os números de maneira confiável.
“A companhia apurou todas as operações registradas na contabilidade, mas ainda está verificando a existência das operações registradas para realizar os devidos ajustes contábeis e, assim, apresentar o saldo contábil de forma fidedigna”, afirmam os auditores.
A Codevasf é vinculada ao MDR (Ministério do Desenvolvimento Regional), pasta comandada até o mês passado por Rogério Marinho (PL). Pré-candidato ao Senado no Rio Grande do Norte, ele defende as emendas e teve diversos embates com o ministro Paulo Guedes (Economia) por despesas públicas.
Questionada se não sabe o valor das próprias obras em andamento e o que tem gerado o problema, a estatal afirmou, em nota, que “a manifestação da auditoria independente apresentada como ressalva diz respeito a sistematização de informações” e que “desenvolveu novo método” para resolver o problema.
Mesmo com os atritos com Guedes, a estatal foi turbinada pelas emendas parlamentares durante o governo Bolsonaro. Em 2021, deputados e senadores destinaram o equivalente a 61% da dotação orçamentária total da empresa.
Neste sábado (09), reportagem da Folha de S.Paulo mostrou o afrouxamento no controle sobre obras de pavimentação feitas pela estatal, como licitações realizadas com dados fictícios que valem para estados inteiros. Essa estratégia é usada com o objetivo de acomodar a crescente injeção de verbas de emendas.
A ressalva da Russel Bedford foi feita no item “Obras em andamento, Estudos e Projetos e Instalações”. A Codevasf afirmou no balanço ter um saldo de R$ 2,7 bilhões na rubrica, mas os auditores não conseguem confirmar o valor.
No relatório, a firma de auditoria diz que não é possível opinar “sobre os saldos dessas contas e os componentes das demonstrações do resultado, das mutações do patrimônio líquido e dos fluxos de caixa”. A Codevasf registrou um prejuízo de R$ 358 milhões em 2021.
Todas as empresas públicas precisam elaborar balanço financeiro e é obrigatório que os números sejam analisados por uma auditoria independente. As exigências estão na Lei das Estatais, aprovada e sancionada em 2016, durante o governo Michel Temer.
A Russel Bedford orientou que a Codevasf elabore um relatório para conciliar os números e auxiliar nos controles patrimoniais.
Em nota, a estatal afirma que “o balanço anual foi aprovado pelos conselhos competentes com a orientação de que ações sejam empreendidas em atenção ao trabalho da auditoria”, afirma a empresa.
Questionada em um segundo momento o que exatamente ainda precisaria ser levantado e se o problema já havia sido resolvido, a Codevasf afirmou que as informações dizem respeito a “ações empreendidas pela companhia” e que o novo sistema será implementado “ao longo de 2022”.
Procurado, o MDR afirmou que a Codevasf “é uma empresa pública, constituída sob a forma de sociedade anônima de capital fechado que, apesar de vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Regional, tem autonomia administrativa”.
As ressalvas nos balanços das empresas são feitas pelos auditores independentes quando constatado que os dados fornecidos pela administração têm risco de não obedecer aspectos legais ou não representar corretamente a realidade, o que pode prejudicar os acionistas – no caso, a União.
Problemas no balanço da Codevasf podem causar prejuízo direto aos cofres públicos, já que ela é uma empresa dependente de recursos do Tesouro Nacional.
Camila Boscov, professora de contabilidade financeira do Insper, afirma que a ressalva significa que a auditoria não teve acesso a dados que confirmem o valor registrado.
“A auditoria não conseguiu encontrar documentos que comprovem que o valor ali contabilizado faz sentido. Nesse caso, a firma de auditoria não consegue saber se o valor mensurado está correto ou não, pois não tem informações suficientes para fazer essa afirmação”, explica.
Os problemas no balanço se somam a um relatório da Controladoria-Geral da União (CGU) publicado nos últimos dias, que afirma terem sido “identificadas falhas nos procedimentos de monitoramento da execução física das obras de pavimentação, que ocorre, predominantemente, nas superintendências regionais da Codevasf”.
Além disso, a CGU detectou a ocorrência de sobrepreço de R$ 3,3 milhões em dez máquinas compradas pela Codevasf com recursos das emendas de relator no ano passado.
O relatório diz ainda que não houve a realização de estudos ou análise sobre a necessidade de certas despesas feitas por meio de emendas parlamentares. Para a CGU, isso indica que as ações podem estar sendo escolhidas para atender interesses privados.
Mais da metade dos valores direcionados pelo Congresso à Codevasf em 2021 vieram por meio das chamadas emendas do relator – que, em tese, servem para o Parlamento ajustar os números propostos pelo governo.
Mas, na prática, as emendas de relator têm sido usadas pelo governo Bolsonaro como um instrumento para parlamentares aliados direcionarem recursos a destinos de interesse (em geral, obras no interior do país). Em 2021, foram mais de R$ 16 bilhões reservados pelo instrumento.
Em dezembro, a Folha visitou uma das cidades que executa obras com as emendas de relator, em Rio Largo (AL). O prefeito Gilberto Gonçalves (PP), aliado do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), chegou a divulgar um vídeo em meio às obras. Mas, dois dias após a gravação, a reportagem constatou que não havia máquinas nem equipamentos no local
Folha de S.Paulo
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