Mãe, esposa, vendedora de marmitas, passadeira e dona de casa, mas, sobretudo, uma estudante que almejava desde criança passar em Medicina. Janecleia Sueli Maia Martins, de 49 anos, foi aprovada no curso após 12 anos de dedicação e tentativas e uma vida inteira de batalhas com a certeza de que, um dia, alcançaria a realização do seu sonho mais esperado. Natural da cidade baiana de Piritiba, Jane, como é conhecida, mora em Petrolina, no Sertão do São Francisco de Pernambuco, desde os 16 anos de idade, quando casou.
Jane foi aprovada na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), em Salvador, a 500 quilômetros de distância de Petrolina, e se prepara para o início das aulas, marcado para a próxima segunda-feira (13). Para arcar com os custos do início de sua estadia na capital baiana, a estudante lançou uma vaquinha virtual - disponível neste link
Em conversa com a Folha de Pernambuco, Jane lembra das dificuldades da infância. A perda da avó materna para o câncer, quando criança, foi um catalisador do seu sonho de ser médica. O objetivo dela era "estudar para médica para curar as pessoas desse doença maldita".
A sua família, de seis irmãos, era muito humilde: o pai trabalhava como vendedor ambulante e a mãe, fazia serviços gerais, como faxineira e copeira.
"Não tinha condições de bancar os estudos da gente para cursar, por exemplo, Medicina. Era muito difícil para a família", rememora a estudante
É por causa da morte da avó, inclusive, que o sonho de Janecleia é se especializar em Cirurgia ou Oncologia.
Diante das dificuldades da família do interior da Bahia, Jane seguiu com os estudos e terminou o então 2º grau (atual Ensino Médio) da escola em 1994. Depois, Jane casou, teve dois filhos e foi trabalhar para tirar o seu sustento. "Fui trabalhar em tudo que aparecia e sempre com aquele sonho na cabeça. Eu tinha os meus pés no chão que tinha esse sonho, mas não poderia realizar por causa das condições e também porque na região não havia faculdade de Medicina", completa Janecleia
A chama do sonho de criança reacendeu em Jane com a chegada do campus da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), em Petrolina, no ano de 2009. Na época, ela trabalhava em supermercado: "Agora sim, vai chegar a minha vez", lembra a estudante. Após ser demitida do emprego, ela voltou a estudar. De início, ela tentou em cursinhos da região de Petrolina, já que havia terminado os estudos há 15 anos.
"Eu vi que não tinha condições nenhuma, o meu conhecimento era muito pouco para alcançar uma meta tão alta. Então eu fui e busquei nos cursinhos bolsas de estudo, já que não tinha condições de pagar. Onde eu não conseguia as bolsas, eu falava com o dono, com a dona e entendiam a minha história e me deram bolsas. Não posso nem citar nomes, porque são muitos", prossegue Jane
Enquanto estudava, a baiana seguia com uma jornada árdua: também trabalhava na informalidade vendendo marmitas, fazendo faxinas, lavando e passando roupa e comercializando perfumes. "Trabalhando durante o dia e corria para o cursinho à noite. Teve uma época que estava fazendo marmitas, entregava até 1 hora da tarde e corria para o cursinho, era o horário que eu tinha", completa a estudante, lembrando ainda que estudava até meia-noite, uma da manhã e às cinco, seis já estava de pé novamente para "continuar a batalha".
Tentativas e críticas
Jane seguia com as tentativas em alcançar no seu sonho de criança. "Tentei por inúmeros anos, recebi muitas críticas de muita gente maldosa. Do tipo: 'Você vai passar uma vida tentando e não vai conseguir nunca, porque a pessoa que veio de escola pública, você já está velha, não tem condições de você acompanhar a cabeça dos jovens de hoje. Para passar em Medicina? Impossível!'", pontua Janecleia, que prossegue:
"Ouvi muito essa palavra impossível"
"Aí eu dizia: impossível, não! Para quem crê em Deus e tem força de vontade e sonhos, não existe o impossível. Tudo é possível", continua Jane, dizendo ainda que seguiu tentando fazendo vestibulares e Enem. Ela queria fazer o curso em Petrolina, mas passou na Uneb, em Salvador, onde se inscreveu porque o pai morava perto, mas ele faleceu ano passado
Jane lembra que pediu e conseguiu isenção no vestibular da Uneb, mas, por causa da perda do pai, não tinha motivação para estudar. "Eu vinha num pique bom de estudo, mas depois disso a cabeça ficou totalmente desorganizada, fiquei desestruturada emocionalmente e sem chão", completa a estudante, que fez a prova sem perspectiva de passar.
A sensação de passar é descrita por ela como uma "felicidade extrema". "Parece que apagou da minha cabeça todo o sofrimento que passei até chegar aqui. Só gratidão a Deus", afirma Jane
Matrícula em cima da hora
Como não tinha dinheiro nem para passagem e apenas 48 horas para chegar em Salvador, Jane disse à família que não teria como fazer a matrícula na Uneb. Foi então que começou uma rede de apoio, que envolveu familiares e amigos.
"Meu irmão rapidamente mandou o dinheiro da passagem para mim e eu corri para a rodoviária. Comprei a passagem para o dia 28 [de fevereiro] às 10 horas da noite, no último ônibus de Petrolina para Salvador. E fui só com esse dinheiro e R$ 30 sobrando para me movimentar lá", diz Jane, lembrando ainda que levou uns lanches na bolsa para passar o dia na Bahia.
No dia 1º de março, Jane finalmente deu mais um passo para completar seu sonho. Na fila da matrícula, ela chegou a ser confundida com mãe de estudante, mas a verdadeira história surpreendeu os colegas e funcionários. "Fiquei aguardando sair o listão das matrículas efetivadas e no dia 7 saiu: estou realmente matriculada", comemora.
A vaquinha virtual servirá para ajudar nos custos com materiais como jaleco e equipamentos, além da passagem, e estadia em Salvador
Mensagem
Jane pede ainda mais valor dos jovens de hoje à educação: "Estudem, tenham objetivos, que hoje a gente vê uma geração sem objetivos. É uma coisa imediatista demais, tem que ser tudo para agora. Tentam uma vez o vestibular. Eles não sonham, é como um professor disse: 'a maioria hoje não tem sonhos, tem desejos e desejos passam'", lamenta a estudante.
"O recado que eu deixo é: sonhem, lutem, acreditem que tudo é possível e que não há realização sem sacrifícios"
"Para mim, estar entrando na universidade aos 49 anos para muitos pode ser uma vergonha, mas não me sinto envergonhada de forma nenhuma. Vou ter muito a aprender, como também vou ensinar muito", completa a estudante.
Questionada sobre o recado que daria para si mesma quando criança, Jane finaliza, emocionada:
"Hoje você é vitoriosa, graças a Deus, e se tornará uma excelente médica, humana, atenderá as pessoas com o coração"
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